A série “Ser ou Não Ser?” investiga as relações de poder do nosso dia-a-dia: será que a vigilância pode ser uma forma de dominação?
Um casal namorando, uma pessoa caída na calçada, um possível assalto. Estas são cenas captadas pelo sistema de vigilância da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo. Flagrantes que as câmeras espalhadas pela cidade gravam 24 horas por dia.
Ruas, aeroportos, lojas, bancos, escolas, casas. Do satélite à ultrassonografia, temos nossas vidas vigiadas desde o útero por olhos sem rosto. O dia-a-dia registrado como num imenso Big Brother. E o que tudo isso tem a ver com o poder? Vigilância e disciplina. Este é o assunto deste domingo.
“Meu trabalho é monitorar o trânsito da Avenida Paulista, ver tudo o que acontece: um carro quebrado, um acidente, um motoqueiro que cai. Faço isso há sete anos”, conta o técnico de trânsito Luis Márcio Azevedo, da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET-SP).
Ele sabe que sua profissão pode estar com os dias contados. Hoje, a CET-SP já tem 256 câmeras nos principais pontos da cidade. E a tendência é aumentar a vigilância. Mas como a vigilância pode se tornar uma forma de poder?
Depois de muitos séculos punindo através do sofrimento físico, da humilhação, a tecnologia do poder foi se aperfeiçoando, e a sociedade percebeu que era mais viável vigiar do que punir. O objetivo desta nova forma de exercer o poder era, através de uma vigilância constante, impedir que o delito fosse cometido.
A idéia que deu origem a essa espécie de “poder invisível” nasceu como um projeto de prisão no fim do século 18: o panóptico.
A intenção era “ver sem ser visto”. No projeto do panóptico, as celas dos presos estavam dispostas ao redor de uma torre central, onde ficava o guarda encarregado da vigilância. Uma única pessoa podia vigiar todas as celas, sem ser notada. Os prisioneiros nunca tinham a certeza de que havia alguém olhando do outro lado e, assim, evitavam cometer qualquer erro.
Pensando no Big Brother Brasil, é como se os participantes fossem os prisioneiros e você o guarda na torre: o olho invisível que tudo vê.
Esta máquina de vigiar, que nasceu para ser uma prisão, acabou servindo de modelo para a construção de manicômios, hospitais e escolas. Mais do que isso: a idéia por trás do panóptico – “ver sem ser visto” – se transformou em uma nova forma de exercer o poder.
Com o tempo, aquele que está submetido à vigilância constante termina vigiando a si mesmo. “Eu saio de casa preocupada com o que as pessoas vão pensar, como vai ser o meu comportamento diante de uma reunião, qual a roupa. Me sinto comandada”, diz a secretária Sheila Bacelar.
É como se existisse uma câmera interna capaz de vigiar por dentro nossas ações. “Por exemplo, eu sou capaz de sair com uma roupa e levar outra na bolsa. Porque se eu chegar num local e uma pessoa falar que não agradou, não ficou legal ou tem alguma coisa que não está combinando, eu corro para o banheiro e troco”, conta Sheila.
E, então, com essa consciência cada vez mais autocrítica, o homem torna-se seu próprio carrasco.
“Não adianta só ser bom. Tem que ser o melhor. Como você vai saber se tem status, se é bonito ou não? Olhando para os outros”, diz a estudante Ana Clara Cruz.
Esta é a forma de tortura moderna. Mas a constante vigilância que vivemos não é tudo. Mais do que vigiar, era preciso construir um sistema de poder capaz de moldar um homem passivo, útil, disciplinado. O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) chamou este processo de “poder disciplinar”.
O poder disciplinar é, antes de tudo, uma forma de organizar o espaço físico, e utiliza uma técnica que busca separar, dividir, para melhor controlar.
O plano da cidade de Brasília, por exemplo, não previa apenas prédios, construções maravilhosas.
“Brasília é um símbolo, uma tentativa de construir uma cidade produtiva, controlada do ponto de vista do espaço e do tempo, igual a uma linha de montagem”, avalia o professor Cristóvão Duarte, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ). “Tem uma parte da cidade que é só habitação, outra é só trabalho e outra é só lazer”.
O que todo sistema quer evitar é que as pessoas se reúnam, se organizem. Por isso, esse tipo de arquitetura procura evitar as aglomerações, distribuindo as pessoas em espaços cada vez mais isolados.
“A cidade é um local de encontro. O encontro dos diferentes. Quando essas diferenças se juntam, você tem uma explosão. O que estamos assistindo hoje é um pouco uma tentativa de neutralizar essa força, a força que vem da diferença. Como é que se neutraliza isso? Repartindo a cidade em porções iguais. Então, você só tem o encontro dos iguais”, explica Cristóvão Duarte.
Quando se pensa em metrópoles como Rio e São Paulo, por exemplo, vemos essa separação nos shoppings e nos grandes condomínios: cidades dentro da cidade.
“Os ricos estão se excluindo nos condomínios fechados, se auto-exilando em bairros protegidos, murados, vigiados, como os antigos castelos medievais, como as cidadelas fortificadas”, constata Cristóvão Duarte. “Acho que se Foucault estivesse vivo, ele estaria estudando a favela carioca”.
Quando você ganha uma identidade, um CPF, um endereço onde recebe conta de água, luz e telefone, passa a ser um ponto no mapa capaz de ser rastreado, vigiado. Quanto mais um homem ganha cidadania, mais exposto fica à vigilância. Mas não foi isso que aconteceu com as favelas.
“As favelas foram construídas a partir do lixo, a partir de tudo aquilo que não servia mais. Viraram uma outra cidade”, diz Cristóvão Duarte.
Depois de tantos anos de descaso dos governos – que não levaram saneamento básico, educação e saúde para os moradores –, as favelas foram se transformando numa espécie de território livre, fora do alcance do sistema de vigilância. Nelas, onde aparentemente reina a desordem, onde o poder não consegue dividir nem controlar, nasce uma outra forma de convivência em sociedade.
“A favela sempre foi pensada como provisória. E aquelas casinhas são todas muito frágeis. Mas, junto com essa rede de solidariedade, ela se torna um fato permanente e indestrutível. Então, daí vem uma força que a gente não esperava”, observa Cristóvão Duarte.
A vida não é possível sem controle e disciplina. Mas até onde essa vigilância deve ir?
Se antes o poder fazia valer sua força pelo sofrimento físico, pela tortura, hoje ele não tem rosto. Não é mais o rei nem o carrasco que detém o poder. Agora, ele está em todos os lugares: na arquitetura, no sistema de educação, no olhar do outro sobre nós. Quanto mais escondido, disfarçado, mais eficiente é o poder. Olhá-lo de frente, saber como atua, é uma maneira de diminuir sua força.
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